Samuel Úria – Lenço Enxuto


"
Empresta-me os teus olhos uma vez
Que os meus não são de gente, apenas rapaz
É só o tempo de me aperceber
Na vida o que se turvar p'ra ser de mulher

Empresta-me uma chávena de sal
E mostra-me a receita do caldo lacrimal
É só o tempo de te convencer
Que nem precipitado consigo chover

Não é um adágio
Que nos persegue
Que um homem só não chora
Porque não consegue

Empresta-me esse enfeminado luto
Ser masculino é ter-se o lenço enxuto
É só o tempo de me maquilhar
De pranto transparente, a cor de mulher

Não nasci pedra
Nasci rapaz
Que um homem só não chorar
Por não ser capaz

Os homens fazem fogo
Com dois paus eles fazem fogo
Por troca ensino-te a queimar

Tu és corrente
Eu finjo mar
Que um homem para que chore, não pode chorar
Que um homem para que chore, não pode chorar
Não sei ser infeliz
Se me guardas no vão da escada
P'ra depois de madrugada
Me teres ali,
Perto de ti.
Assim ainda meio ensonado,
Com o verbo enferrujado
P'ra falar de ti,
Guardo-me no silêncio.
Atento.
Sem distrações, vejo-te.
Vens meiga e pura,
Envolta numa tal brandura...
Ternurentamente caminhas até mim.
Revolve-se o meu pulsar.
Apanho, sem névoa, o teu olhar.
Quente.
Atira-me um beijo! — peço impaciente.
Não me faças esperar...

Áspera língua

Turbulenta incerteza de nada saber...
Não sabes que vives porque alguém te soprou essência?!
Não és apenas porque tens que ser.
Repara na tua tiritante mente...
Falas ao barato preço do esconderijo da distância
Mas apregoas a decência, a inocência da infância!

É cálida a nervura que te marca o corpo.
Faz-te adormecer na secura de um seiva que não mais irriga.
És mestre no engodo e na senda da intriga!

Vejo as pegadas caducas e do teu passo volúvel.
Vão voar com o vento.

É esta a áspera língua que não quero ouvir.